A sociedade brasileira, como um sistema de convivência social, poderia, grosso modo, ser subdividida em dois subsistemas: público e privado. O primeiro, denominado Estado, funciona desdobrado em três subsistemas, “harmônicos e independentes” (Legislativo, Executivo e Judiciário), formados por burocratas efetivos, por particulares terceirizados e por políticos eleitos esporadicamente. Ocorre que, por conta do modelo de sociedade escravocrata que ainda perdura no Brasil, dissimulado em “Estado Democrático de Direito”, os políticos se eternizam nos seus cargos eletivos e enricam como “burocratas-políticos” ou “políticos-burocratas”, embora o somatório dos seus ganhos nunca explique seus altíssimos e mal declarados patrimônios. Quem sabe não esteja aí a explicação da alegoria (tal como o globalismo de um sistema: o todo maior que a soma das partes) de Caetano Veloso: “Tudo certo como dois e dois são cinco”...
Para se ter uma exata dimensão do grau de corrupção reinante nos dois subsistemas, devemos primeiramente admitir que o segmento maior (privado) sustenta o menor (público), para que este preste àquele os serviços de algum modo definidos no “Contrato Social”. Ocorre que num Estado excessivamente intervencionista a tendência da sociedade é ser exageradamente clientelista. Esse clientelismo, por sua vez, oscila num continuum: numa ponta, estão os grandes interesses econômicos e pecuniários dependentes de manobras políticas (do Executivo ou do Legislativo) ou judiciais capazes de transformar, num toque de varinha de condão, o poder público em dinheiro particular; na outra, está o assistencialismo explorador dos ignaros e pauperizados eleitores (maioria absoluta) que dependem desesperadamente de remédio, de consulta médica ou de algum benefício simples para si ou para as suas comunidades abandonadas à própria sorte: o “gado de rebanho” nietzschesiano. É assim de propósito... Pois é a ausência do Estado a necessária lacuna para a prática do assistencialismo gerador de votos de cabresto nos currais eleitorais que eternizam o círculo vicioso da classe política, prática da “casa-grande e senzala” que vem do Brasil Colônia e alcança o Brasil República nos dias de hoje.
O círculo vicioso é uma roda que não para de girar porque, formada por interesses dos três poderes estatais e pelos interesses particulares, ela é alimentada pelo combustível capitalista: dinheiro. Tendo-o, é muito fácil dissimular-lhe a origem, contando os endinheirados com os mesmos métodos que servem indistintamente a todos (corruptos e corruptores públicos e privados). Afinal, a pipa é uma só e o vinho é o mesmo. Diferenciam-se os personagens tão-somente na quantidade em que o precioso líquido é distribuído, variando de tonéis a gotículas microscópicas ou a gota nenhuma; mas é certo que os tonéis permanecem nas adegas da elite histórica do mundo capitalista e financeiro: dos nomes de família do passado, e dos novos-ricos que emergem da gotícula ao tonel: políticos que do nada se tornam milionários só pelo acúmulo de salários, mesmo gastando bastante para manter um alto padrão de vida e ainda sustentar seu assistencialismo, contradição tão surrealista que mais parece ficção literária.
É claro que não são muitos os políticos que passaram da gotícula ao tonel ou até saíram do “nada ideológico-socialista” ao “tudo pragmático-capitalista”. Somados todos que ocupam cargos eletivos na União, nos Estados e nos Municípios, o número não é tão expressivo se comparado com a totalidade da sociedade brasileira. Como são dispersos, não despertam a atenção societária a não ser em casos raros como o de Brasília, e somente porque o poder político local era oposição ao poder maior nacional. É assim porque a elite para onde eles e elas se deslocam mediante artifícios corruptos é mínima e a massa miserável é abundante...
E a “roda da fortuna” gira escapando da verdade e contrariando a lógica de Friedrich Nietzsche: “A roda do tempo pode rolar para onde quiser, nunca poderá escapar à verdade”. Escapa, sim, ou melhor, a verdade é cristalina, concreta, aberrante, mas oculta nas sombras da conivência estatal com as ilicitudes que sustentam uma economia invisível de “caixa dois” maior que a oficializada no “caixa um”. E no rodar da roda alimentada por ilicitudes há de tudo: piratarias vendidas em tabuleiros espalhados pelos grandes centros urbanos, ao lado das “vistas grossas” de guardas municipais, da polícia, de fiscais e dos demais burocratas que as deveriam coibir, mas não o fazem a medo daqueles superiores que lhes enviam ordens tácitas e/ou explícitas no sentido da omissão...
Acrescem aos tabuleiros de piratarias as maquininhas caça-níqueis, as bancas de apostas do jogo do bicho e outros jogos de azar praticados à larga sem qualquer repressão estatal. Aliás, o Estado sem-vergonha, em vez de coibir as ilicitudes, vem oficializando-as em “raspadinhas” e tantos outros jogos lotéricos nitidamente de azar, sem falar nas maracutaias televisivas dos telefonemas miraculosos e dos sorteios semelhantes aos jogos de azar que não são legalizados por desinteresse dos que exploram os jogos de azar oficiais e permitem sua exploração por particulares midiáticos e ainda recebem a “parte lhes cabe deste latifúndio”...
Em meio a essa corruptela de bilhões e bilhões de reais, inclui-se a “ordem de cima” para os subordinados "de baixo” produzirem ganhos ilícitos em seus lugares de atuação, de modo que a maior parte desses ganhos “suba”... Caso contrário, os desinfelizes burocratas “de baixo” são levados ao ostracismo e reduzidos ao mísero ganho oficial que não lhes dá sustento. Isto na melhor hipótese, porque o pior é a perda do emprego por meio de manobras disciplinares engenhosas e rápidas no sentido de excluir do sistema o já excluído pelo azar do berço de lata enferrujada (“A árvore oculta a floresta” – provérbio alemão).
Essa cultura de pressão da elite sobre a massa poderia ser traduzida pela “gorjeta” ou “esmola” que os miseráveis de flanelinha na mão tentam ganhar; ou os malabaristas de bolinhas de tênis em semáforos; ou os vendedores de balas, doces e demais produtos piratas de fora e daqui que infestam o ambiente urbano como formigas indo e vindo do ambiente ao nicho levando pequenas folhas, movimentação animal que lembra os tenebrosos tempos de exploração do ouro (e do homem pelo homem) em Serra Pelada: a procissão de miseráveis no vaivém do buraco à superfície e da superfície ao buraco com o peso da terra no lombo exaurido. Lembra também as “formiguinhas fardadas”: corpos e mentes dóceis tão bem delineados por Michel Foucault em seu clássico Vigiar e Punir... E os “corpos e mentes dóceis” lembram os PMs...
Nesta “procissão des-humana-animal” todos rezam na rigorosa cartilha de quem manda mais, desde o padre que vai à frente da charola e seus contritos carregadores, até alcançar o último da fila carregando o toco de vela... Todos rezando e cantando baixinho em busca da salvação no Reino dos Céus, porque neste reino da desigualdade eles já perderam a esperança. Ou então descambam para a revoltada ilicitude seguindo a crudelíssima e falsa lógica de que, se o grandão pode se locupletar, o pequeno também há de poder... Ledo engano... Enquanto isso, do bispo para cima, até o topo da cobertura de luxo, os mandantes se distraem com as coisas boas da vida sob os olhares invejosos ou irados da procissão enganada (Lucrum unibus est alterius damnum– “A desgraça de uns é o bem de outros”)...
Sim, sim!... Enganada e temerosa da danação, e por isso cata as moedas e jorra-as para cima a entupir as algibeiras dos poderosos que lhes assistem em conforto e lhes dão bons conselhos, dentre os quais nunca contrariar seus mandatários e sempre agasalhar as falhas do sistema que os comanda com mão de ferro... E nessa procissão de miseráveis lá estão os PMs sempre prontos a assumir erros muitas vezes decorrentes de mandos inconfessáveis, ou erros sem mando algum, mas fruto de pura revolta contra o sistema, e deste modo se habilitam ao patíbulo do “castigo-espetáculo” hodierno, que sempre consegue sublinhar em clamor os erros menores para acobertar os desastres maiores.
É o que se assiste agora em vista da tragédia causadora da morte de Rafael Mascarenhas, fato extremo e gravíssimo, porém tornado “menos-valia”, eis que superado pela corrupção (ou extorsão) supostamente praticada por dois PMs, fato menos grave tornado “mais-valia” pela mídia elitista. Também, a ação criminosa do atropelador e os ardis do seu pai sucumbem em valor ante a “corrupção policial” (“mais-valia” deflagrada pela mídia capitalista mui bem remunerada pelo sistema oficial por meio de verbas publicitárias).
É impressionante o desprezo da verdade pela mídia e por todos que a ela se curvam sem qualquer reflexão. Há, sim, um conúbio perfeito entre o sistema estatal e a mídia particular influenciadora do povoléu. E, para fingir isenção, a mídia busca fatos congêneres e corriqueiros de corrupção policial atingindo um “humilde cidadão”, assim desviando o foco do corruptor de alto naipe providencialmente amparado por competente e articulado advogado dono do discurso do seu cliente e do filho que atropelou e matou o skatista Rafael: o fato mais tenebroso e quase esquecido.
Enfim, um discurso afinado e protetor da elite que casualmente se confrontou: o atropelador de classe média ou alta e o atropelado de classe média ou alta, tudo posto, ao fim e ao cabo, como obra infernal de dois integrantes daquela procissão: os últimos da fila com suas velas gastas pelo fogo e a parafina quente queimando-lhes as mãos: os dois PMs “extorsionários” ou “corrompidos”... Em sendo eles punidos (já estão em prisão administrativa e ficarão no xilindró), está o problema resolvido e o resto (o grave homicídio) é papelada e tempo a favor da elite: “tudo certo como dois e dois são cinco”...
Os PMs merecem o patíbulo?... Sim?... Então, que sejam logo enforcados!... E, com a sociedade vingada, o outro Rafael atropelador e seu pai serão lembrados apenas como coadjuvantes do crime de extorsão de que teriam sido “vítimas”, e, nesta oportuna condição, quase que equiparados ao jovem skatista (a verdadeira vítima) atropelado e morto numa via interditada ao tráfego, por um carro em alta velocidade, sugerindo participar de “pega societário”. E assim caminhará a sociedade brasileira, como sempre, e desde antes, e decerto depois... Ah, parece que a procissão de candidatos à carreira de soldado da PMERJ chegou perto de cem mil para disputar mil vagas. Portanto, não se há de temer duas lacunas mais lacunas no silencioso e conformado rebanho (Si corvus posset tacitus pasci, haberet plus dapis – “Ovelha que berra, bocado que perde”): as ovelhas disponíveis para abate serão sempre mais numerosas do que os lobos que delas se alimentam para fazer o círculo vicioso girar sem jamais chegar à verdade nietzschesiana...
FONTE:http://emirlarangeira.blogspot.com