segunda-feira, 15 de março de 2010

A irracionalidade da disciplina militar estadual



A essência da impunidade se traduz na ideia de que quando alguém percebe que pode cometer algum crime impunemente, comete-o. Serve também o exemplo para o mundo disciplinar: sensação de impunidade de baixo para cima (transgressão disciplinar praticada por subordinados que se entendem inalcançáveis pelas regras escritas) e de cima para baixo (superiores hierárquicos que se entendem imunes a cobranças adrede formalizadas para coibir seus excessos).
Como a hierarquia é piramidal e a base da pirâmide é mais numerosa e menos poderosa, o pretexto de que ela deva ser rigorosamente fiscalizada justifica as atrocidades cometidas por superiores contra subordinados. Pior é que a justiça (comum ou militar), engessada pela cultura predominante da casa-grande e da senzala, costuma dar razão aos de cima, ficando as arraias-miúdas sempre na pior situação (rico quando morre é tragédia; pobre quando morre é estatística).
Nesta corrida de elitizados gatos (superiores) contra pauperizados ratos (subordinados) ganham sempre os primeiros, pois o tempo lhes ensinou a urdir armadilhas baseadas na irracionalidade da vigilância e da punição denunciadas por Foucault. Chega a ser hilariante o discurso dos que punem e jamais são punidos. Esses elitizados gatos não se esquecem de citar pró-forma os princípios elementares do devido processo legal, em especial o do direito dos pauperizados ratos à ampla defesa e ao contraditório, decerto ignorando o real significado do ordenamento constitucional em vista dos direitos e garantias individuais.
Não seria trágica esta situação se não abrangesse aqui no RJ duas instituições de efetivos numerosos: a PMERJ e o CBMERJ. Somados os militares estaduais ativos e inativos, é possível supor que a contagem ultrapasse as cem mil almas aflitas no cotidiano da opressão disciplinar. Esta opressão é vital à garantia de controle da tropa que superiores hierárquicos precisam dar às autoridades políticas, tudo sintetizado na crudelíssima máxima do “tenho a tropa na mão”...
Esse “ter a tropa na mão” é um clichê terrível. Tornou-se cultura de mando e desmando não se sabe desde quando, talvez desde o início do militarismo no mundo remoto. Para exemplificar o dano do “militarismo” praticado pelas instituições militares estaduais, arrisco-me a dizer que o recente episódio do policial civil aloprado numa DP (bem resolvido pelas autoridades policiais civis), se acontecesse em quartel e fosse o aloprado um militar estadual, a primeira medida seria anunciar sua exclusão disciplinar. Isto se antes ele não fosse abatido a tiros...
Como os rigores disciplinares estão ainda escritos em carcomido alfabeto gótico, a única maneira de mudar esta cultura tenebrosa do desrespeito aos direitos humanos dos militares estaduais é refazer toda a legislação disciplinar adequando-a à Carta Magna. Mas isto parece sugestão utópica num momento em que a Lei Maior é constantemente aviltada pelo próprio governante e seus apaniguados (elitizados gatos), assim como é certo que dos demais poderes (Legislativo e Judiciário) nada se pode esperar: são também formados por elitizados gatos.

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