sexta-feira, 4 de junho de 2010

Segurança Pública

O crime organizado tem hoje muito do que falta à estrutura brasileira de segurança pública, composta de policiais mal pagos (e com grande disparidade de salários entre os profissionais de base e a chefia) e mal treinados, sem um sistema de inteligência que lhes dê suporte para planejar qualquer ação.
Para o professor de Direito da Universidade de Brasília — UnB — Roberto Aguiar, que também foi secretário de Segurança Pública do estado do Rio de Janeiro em 2002, o crime organizado é um problema administrável, sim. “O funcionamento das gangues no Brasil não chega aos pés da complexidade das máfias, por exemplo”, cita Aguiar. Segundo ele, o que dá força a grupos como o PCC são justamente as fraquezas do nosso sistema de segurança, resultado de anos de falta de investimentos tanto no sistema em si quanto numa concepção de segurança diferente, que não seja a de "mais homens, mais viaturas, mais armas".
“Os regulamentos de várias polícias hoje são reedições atualizadas de normas que vêm desde as antigas forças de Dom João VI. Naquela época, as regras eram algo do tipo ‘sapato sujo é penalizado; matou alguém, não tem problema’. Nós tentamos mudar isso no Rio de Janeiro, mas o governo seguinte retornou às mesmas regras”, conta Aguiar.

• Leia mais sobre as distorções no treinamento policial no tópico “Mocinho e bandido?”, da reportagem “E no Brasil? Como estão as crianças”.

Crime engravatado
 Foto: Lindomar Cruz/ABr
 
 Colarinho branco: a legalidade é um dos grandes aliados do crime organizado.
Quando ouvimos falar em “crime organizado”, muitas vezes nos vem à cabeça aquela imagem do bandido maltrapilho, disfarçado e com uma arma na mão. Mas, diferentemente do que imaginamos, muitos dos integrantes desse tipo de quadrilha são muito bem-apessoados e não precisam se esconder, muito menos usar uma arma. Isso porque um grande aliado do crime organizado, por incrível que pareça, é a legalidade. “O que torna dificílimo combater o crime organizado é o fato de que ele sempre prospera e se desenvolve a partir de articulações com o mundo legal”, alerta Fernando Sallas, pesquisador-sênior do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo — NEV/USP. E essas articulações não se restringem “apenas” a suborno de agentes penitenciários e policiais. Sallas se refere também ao envolvimento de servidores da Previdência Social e Receita Federal, fiscais alfandegários, operadores portuários e empresas que atuariam, por exemplo, no transporte de drogas e armas e na facilitação da liberação dessas cargas. “Pior ainda é saber que, quando alguma ação desse tipo é descoberta, as investigações muitas vezes cedem a influências corporativas, protegendo esses indivíduos e instituições”, ressalta.
O exemplo mais evidente desse tipo de prática atualmente é o da suspeita que ronda os advogados que atendem integrantes de grupos criminosos. Todo cidadão que responde por um crime (mesmo quem é condenado) tem direito a ter um advogado, é claro. Mas uma grande discussão surgiu após a denúncia de que Sérgio Wesley da Cunha e Maria Cristina Rachado — advogados de dois dos líderes do PCC — teriam comprado de um funcionário da Câmara dos Deputados gravações de depoimentos sigilosos da CPI do Tráfico de Armas para fornecer à organização criminosa. Diz-se também que o conteúdo dessas gravações teria, de alguma forma, incitado ou favorecido os ataques em São Paulo. Os dois confessaram envolvimento no crime e continuam sendo investigados. Mas até agora não se viu uma ação mais enérgica por parte da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), nem no caso deles nem no daqueles que usaram de sua condição de advogados para infiltrar telefones celulares nas prisões. A Ordem inclusive defende que os advogados sejam isentos da revista durante visitas aos presos. Para o presidente nacional da entidade, Roberto Busato, o certo seria revistar o presidiário após as visitas, e não os visitantes.


Nosso sistema penal é outro grande responsável pelo caos da segurança pública brasileira. Com base em uma idéia da década de 50, os principais presídios do país foram concebidos para serem grandes complexos prisionais, com capacidade para o máximo possível de presos. São verdadeiras cidades, onde a tensão é imensa. Misturam-se presos de diferentes categorias (daquele que roubou o mercadinho da esquina ao matador de aluguel) nas mesmas celas e em condições desumanas. Uma missão da Anistia Internacional realizada em 2005 encontrou 90 presos em uma cela de pouco mais de 3 metros quadrados, no centro de detenção preventiva da Polinter, no Rio de Janeiro. No Mato Grosso do Sul, estado que também foi afetado pela recente onda de rebeliões ordenadas pelo PCC, o governador Zeca do PT reconheceu o colapso do sistema penitenciário local e decretou estado de emergência. Lá, os presídios têm, no total, capacidade para 3.700 pessoas, mas atualmente suportam mais que o dobro disso.

Foto: Portal Educacional
O Carandiru simboliza o fracasso do sistema penal brasileiro.
A falência do modelo de cidades prisionais ficou clara em 1.o de outubro de 1992, quando uma briga de presos no Carandiru culminou em uma rebelião gigantesca, com mais de 7 mil presos. A polícia decidiu simplesmente “chegar atirando”, e matou 111 pessoas. O episódio, que depois foi levado para as telas de cinema, ficou conhecido como Massacre do Carandiru e chamou a atenção da opinião pública para o problema. Mesmo assim, passaram-se 10 anos até que o Carandiru fosse desativado. Desde então, a tendência no país é a construção de presídios menores. A ONU recomenda que a capacidade máxima de um presídio seja de 600 pessoas.
Mas só isso não resolve o problema. A desumanidade continua, e também está nas unidades de internação de adolescentes. O exemplo mais conhecido é o da Febem, em São Paulo. Ironicamente chamada de Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor, ela é símbolo máximo da crueldade com que são tratados os internos na maioria das unidades similares do país. Esses jovens, que deveriam cumprir um regime especial, com acompanhamento psicológico, escola e oficinas profissionalizantes, são submetidos às mesmas regras de qualquer prisão. Se, para um adulto, elas já são violentas e têm o poder de deformar o caráter, imagine para uma pessoa em fase de formação. “Essas unidades têm o compromisso legal de respeitar os direitos humanos desses jovens, mas descobrimos que a maioria delas não faz isso”, comenta a Dra. Marta Tonin, que liderou uma ação realizada este ano pela Comissão da Criança e do Adolescente da OAB e pela Comissão de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia. Juntas, as duas instituições comandaram visitas-surpresa em unidades de internação de 21 estados e no Distrito Federal. Muitas delas ficam em antigos presídios, são superpopulosas e carecem de pessoal capacitado para oferecer acompanhamento, como psicólogos e assistentes sociais. “O grande papel desses centros é socializar os adolescentes. Não adianta trancafiá-los por três anos (tempo máximo para a pena) se o estado não lhes possibilita estudar e aprender um ofício”, diz a Dra. Marta.
20% dos ex-internos da Febem acabam voltando à instituição depois de soltos. Esse dado foi revelado em um estudo feito em 2005 pela Universidade Federal de São Paulo — Unifesp — juntamente com universidades do Canadá.
Você deve estar pensando: “Lá vem aquela conversinha sobre os direitos humanos dos criminosos.” Não é bem uma conversinha. De que forma você acha que um criminoso vai se regenerar se passar anos trancado em uma prisão violenta, sem oferta de trabalho decente e sem ao menos ter acesso a condições básicas de higiene? De que forma você acha que ele vai voltar à sociedade quando for liberado? Como bem resume o professor Roberto Aguiar, “as cadeias são escolas de pós-graduação em criminalidade”.
O fato é que os presídios, da forma que existem hoje, são verdadeiras bombas-relógio. E, mesmo quando se trata de criminosos, não há mocinhos nem bandidos. Por um lado, as facções dominam a massa carcerária, corrompem funcionários e impõem a sua vontade em muitas das penitenciárias, transformando-as em centrais do crime; por outro, o próprio Estado brasileiro desrespeita as leis de execução penal, pois não oferece sequer condições mínimas de sobrevivência.

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