Excluindo da abordagem a imagem do oficial que figura na foto do jornal O Globo, profissional inegavelmente competente e dedicado, narremos: embora a legenda da foto sugira uma "festa" de inclusão de novos policiais militares, a cara deles cantando mais parece de ira ou de reação típica de um arrocho militar que nem mesmo começara. A pose, com efeito, não inspira alegria, mas transpira agressividade pelos poros da “tropa formada” dizendo a que veio... Se o início, diante do público e da mídia, é militarmente agressivo, não me parece mui difícil imaginar a sequência do treinamento a que esses homens já estão sendo submetidos, ou seja, primeiro hão de ser “corpos dóceis” (ruptura da cultura civilista para a inserção da cultura militarista), e depois treinarão incumbências policiais desnorteando-os (ruptura da identidade militarista para a inserção da cultura policialesca)...
A formação pouco ou nada mudou desde que fui incorporado à Polícia Militar, pelos idos de 1965. Ingressei voluntariamente na tropa como soldado raso, e as instruções daquela época se mantêm vivas (ou mortas) até hoje, com a ressalva de poucas diferenças: alguns acréscimos aqui, outros cortes ali, mais outras inovações eventuais acolá. Pouca coisa... No ano seguinte, 1966, fiz concurso e ingressei como aluno na Escola de Formação de Oficiais (atualmente é a Academia Dom João VI e os alunos são “cadetes”). Não é que na EsFO dei de cara com matérias literalmente idênticas às que estudei na tropa? E não se há de desconsiderar o repeteco: era expressivo o número de assuntos iguais aos ministrados aos recrutas (soldados).
Também não é difícil entender o fenômeno. Por trás dessa massificação de inutilidades militares estava o Exército Brasileiro determinando em “Planos Bienais de Ensino e Instrução” cada assunto, tintim por tintim, e fiscalizando a PM em inspeções pelo Comando Regional (1ª Região Militar do I Exército) e inspeções nacionais (Inspetoria Geral das Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares – IGPM –, órgão do Estado-Maior do EB). Demais, os comandantes-gerais das PPMM eram oriundos do EB e primavam pelo cumprimento das normas emitidas por sua corporação de origem. Mas também é certo que enquanto fazíamos uso do carcomido Fuzil Ordinário (FO), o EB já possuía o Fuzil Automático Leve (FAL). Nossas armas haviam de ser piores, claro, assim como a Emenda Constitucional do regime militar determinava com todas as letras que o PM não podia perceber remuneração superior à do seu equivalente em posto ou graduação no EB.
Dizer que nada mudou com a abertura política não seria justo. Hoje, embora as PPMM permaneçam na Carta Magna como Forças Auxiliares Reservas do Exército, este finge que não existimos. Exceto quanto à interação das comunidades de informações, que continuam firmes em suas ideologias contra a “subversão”, enquanto o tempo passa e eles (arapongas) sonham com outra ditadura. Dentro das PPMM as comunidades de informações são tão poderosas que até hoje nenhum PM pode integrá-la sem o aval antecipado do EB, situação constrangedora que se estende ao Chefe da 2ª EMG (2ª Seção do Estado-Maior Geral), cujo nome deve ser apresentado pelo comandante-geral da PM ao Alto Comando do EB para aprovação. Se for vetado, o indicado pela PM não assume o cargo, e disso o EB não abre mão, valendo a assertiva para os Corpos de Bombeiros Militares.
Há algumas insurgências, sim! Os governantes, a partir de 1983, promoveram e ainda promovem mudanças estruturais nas Polícias Militares e nos Corpos de Bombeiros Militares, sem, entretanto, modificar sua essência militar. Os regulamentos disciplinares permanecem cópias dos seus equivalentes no EB, demais de outros regramentos que interessam às PPMM manter para efeito de controle rígido da tropa. E são esses controles que permitem aos eventuais (e políticos) comandantes-gerais fazer o jogo do governante estadual sem chiadeiras de baixo para cima. E assim as Polícias Militares e os Corpos de Bombeiros Militares se encaminham à decrepitude organizacional, porém com sete vidas...
Agora mesmo assistimos à excrescência de ver o CBMERJ com sua estrutura subordinada à Secretaria de Saúde, embora esteja gravado com todas as letras na Carta Magna: os Corpos de Bombeiros Militares são organismos de segurança pública. Demais disso, há na mesma Carta Constitucional o Artigo 22, caput, Inciso XXI: “Compete privativamente à União legislar sobre: (...). XXI – normas gerais de organização, efetivos, material bélico, garantias, convocação e mobilização das polícias militares e corpos de bombeiros militares;”
Nada disso importou ao atual governante, mas é paradoxal que ele chore em público defendendo o pré-sal amparando-se na invencibilidade da Carta Magna, embora a proposta de mudança das regras do pré-sal esteja ocorrendo em local próprio e por meio de atuação legítima e legal de um parlamentar. Ora, também sou contra diminuir a grana do RJ, tanto como sei que dessa grana do pré-sal, para os militares estaduais sobrará tão-somente o sal a lhes amargar a boca faminta... E ele, o governante, atropela as constituições federal e estadual privilegiando grupos de PMs e BMs com remunerações diferenciadas em vista de atuarem naquilo que ele, governante, acha eleitoralmente bom para o seu governo e para si. Enquanto isso, ele discrimina a maioria que se esforça para atender condignamente a sociedade no seu todo. Ele, governante, olvida um dos pilares da democracia ensinada por Péricles: a isonomia.
É nesse vale-tudo apoiado por uma imprensa remunerada com polpudas verbas publicitárias estatais que o atual governo segue sua cartilha eleitoral. Finge que age, mas não age! Finge que dá, mas não dá! E mantém a pressão disciplinar sobre o conformado rebanho do qual me recuso a fazer parte, em especial do rebanho que o aplaude puxado pelo nariz shakespeariano: “Embora a autoridade seja um urso teimoso, muitas vezes, à vista do ouro, deixa-se conduzir pelo nariz.”
Nesse caldo de cultura são jogados os ingredientes da formação do PM: a nossa “sopa primordial”... Eis que pouca ou nenhuma diferença há em relação ao passado, talvez até o passado fosse mais transparente: havia manuais impressos e acessíveis à tropa; havia mais empolgação nos cursos e concursos; havia mais respeito aos direitos do PM. Enfim, éramos felizes e não sabíamos.
Resgatar a dignidade do PM é preciso! E não será diferenciando seus serviços e escalonando-os num continuum do pior ao melhor por meio de benesses remuneratórias que a instituição crescerá. Pelo contrário, esse critério de diferenciação, cujo cúmulo se viu na Revista Veja-Rio (“Os 300 de Beltrame”), não é saudável à tropa. Foi como se referiu a Revista Veja ao poderoso secretário de segurança pública, claro que com o seu assentimento tácito ou explícito. E ele, admirador de Stálin, este sim, autor da famigerada frase das omeletes e do quebrar de ovos (“Não se pode fazer um omelete sem quebrar os ovos.”), com certeza concordou com o sistema de privilégios sugerido pela empolgada reportagem, que, de certo modo, até incentiva uma inversão de valores hierárquicos no intestino da corporação militar estadual.
Que formação é essa? Não seria mais prudente formar PMs segundo um padrão comum a todos para depois complementar a formação com cursos de aprimoramento para destiná-los a fins específicos, dando a todos a chance de concorrer ao trabalho rentável além da remuneração normal? Aí sim, não estaria havendo quebra da isonomia, mas apenas respeito às diferenças fundadas no mérito individual, fator importante para minimizar essa maldita cultura do rebanho sem vontade.
Claro que a formação do PM é fundamental. Seria melhor, todavia, que os concursos internos fossem menos subjetivos ou nem existissem (nunca se sabe se a banca examinadora é competente para avaliar os candidatos). Os cursos cuidariam de selecionar os melhores num processo de duração predeterminada e não num relâmpago a soltar raios na cabeça de candidatos mais cultos que os membros de bancas examinadoras nem sempre formadas por notáveis, e, muitas vezes, sim, compostas por apaniguados de quem eventualmente manda. E os desastres acontecem, injustiças são sacramentadas em nome da proteção de idiossincrasias horripilantes, a tal ponto que não é descartável a ideia de um mau aluno de cursos de formação, de aperfeiçoamento ou de especialização ser integrado a alguma banca examinadora porque tem prestígio com quem manda. E seja, de caminho, assumido desafeto de algum candidato e não se considera ética e moralmente impedido de examiná-lo...
Aconteceu comigo!... Fui examinado por um presidente de banca examinadora que ingressou na PMERJ sem fazer prova de concurso; e, demais desse absurdo, era notoriamente desafeto meu. Reprovado por ele no concurso, ingressei com pedido de revisão e entrei no curso em humilhante “rabo de turma”, com direito a malévolas insinuações de que “passara em grau de recurso por prestígio político”. Do curso (Curso Superior de Polícia), porém, e avaliado por diversos professores universitários, dentre outros competentes instrutores militares, fui o primeiro colocado de cabo a rabo, demonstrando que o rabo do burro não me pertencia. Calei o boquirroto dos maliciosos e invejosos... Devolvi o rabo e o chapéu de burro ao seu real destinatário (o presidente e membros da banca examinadora) com pompas e circunstâncias de solenidade no Copacabana Palace e prêmio de viagem de estudos aos EUA e ao Japão. Mas, e daí?... A banca examinadora foi punida? Não, claro que não! Por isso, e quando se fala em formação, aperfeiçoamento ou especialização na PMERJ, obrigo-me a relembrar Horácio (Arte Poética, 139): “As montanhas estão em trabalho de parto; nascerá um ridículo rato.”
Porque, enquanto a PMERJ não restaurar a sua editoria de livros técnicos e de milhares de bons trabalhos de pesquisa realizados em cursos de formação, aperfeiçoamento e especialização de oficiais e praças; enquanto a PMERJ não reproduzir conhecimento doutrinário e operacional; enquanto não houver lugares nos quartéis para a aquisição ou distribuição gratuita de obras acadêmicas e técnico-profissionais sobre segurança pública; enquanto não se providenciar seminários e congressos internos e externos (interação com universidades) com vistas à produção de um corpo de conhecimento sobre a ordem pública e sua preservação, a aleatoriedade do “sabe mais quem manda mais” continuará predominando na cultura interna. E a formação permanecerá prejudicada na origem, gerando nas ruas um resultado operacional aquém do desejado pela população...
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